Duas organizações acusam as autoridades espanholas de fechar os olhos às atividades das frotas do país que pescam no Senegal e na Guiné-Bissau.
Duas ONGs ambientais, a ClientEarth e a Oceana, estão a processar Governo espanhol por alegadas falhas na investigação e sanção de navios de bandeira espanhola suspeitos de pesca ilegal nas águas de África Ocidental.
A ação judicial, que decorre em Madrid, acusa as autoridades espanholas de não cumprirem as obrigações da legislação comunitária, ignorando os navios que desligaram repetidamente os sistemas de localização quando operavam ao largo das costas do Senegal e da Guiné-Bissau.
"Pesca às escuras"
No centro deste processo está a utilização de sistemas de identificação automática (AIS). Esta tecnologia de localização é obrigatória para todas as embarcações com mais de 15 metros de comprimento e contribui para a segurança e transparência do sector das pescas.
Uma análise da organização sem fins lucrativos Global Fishing Watch revelou que vários navios com pavilhão espanhol pareciam estar às escuras durante longos períodos entre 2020 e 2023. Um barco terá mesmo desligado o AIS durante mais de um ano.
"O que nos intriga é a razão pela qual estes barcos desligam os sinais de identificação pública, ficando às escuras durante períodos tão longos", afirma Nils Courcy, advogado da ClientEarth, em comunicado.
As ONGs argumentam que esta atividade pode ocultar práticas ilícitas que não só ameaça a biodiversidade marinha, como também prejudica as economias e a segurança alimentar numa das regiões onde mais se pesca.
"Esta falta de transparência pode estar ligada a fraude", acrescenta Courcy.
Em 2023, estas duas organizações solicitaram formalmente às autoridades espanholas que investigassem as anomalias do AIS. Mas alegam que Espanha se recusou a fazê-lo, o que deu origem à ação judicial.
Lacunas jurídicas e consequências globais
Quando se trata dos deveres legais das pescas, um setor globalizado, as águas são turvas.
As autoridades espanholas alegam que não têm jurisdição para atuar contra cidadãos ou empresas que operam fora das águas da União Europeia, a menos que os navios estejam inscritos numa lista negra internacional. As ONGs argumentam que esta posição é contrária ao direito comunitário.
"A legislação da UE proíbe explicitamente os cidadãos e empresas de se envolverem ou apoiarem a pesca ilegal em qualquer parte do mundo", afirma Ignacio Fresco Vanzini, conselheiro político sénior da Oceana. "Se o fizerem, os Estados-membros devem identificá-los e sancioná-los, independentemente de esses navios fazerem parte de listas negras oficiais."
Muitas empresas espanholas estabelecem t-ventures com empresas locais ou transferem o pavilhão de navios para países como o Senegal ou a Guiné-Bissau, o que lhes permite beneficiar economicamente das ricas zonas de pesca de África Ocidental, contornando os regulamentos comunitários. Embora tecnicamente operem ao abrigo da legislação local, esses navios continuam a ser propriedade de entidades espanholas.
A aplicação da lei é uma questão ainda mais complexa.
O direito internacional atribui a responsabilidade pela aplicação da lei aos Estados costeiros e de bandeira. Mas as ONGs consideram que, quando essas autoridades não atuam, Espanha deve intervir.
Pesca ilegal: um problema europeu mais vasto
Esta ação judicial surge num contexto de crescente escrutínio das práticas de pesca a nível mundial.
Em fevereiro de 2025, várias ONGs processaramo Governo francêspor não ter posto fim à pesca de arrasto de fundo nas reservas marinhas, argumentando que as autoridades tinham ignorado estas práticas prejudiciais nas áreas protegidas.
O Senegal, por sua vez, recebeu um "cartão amarelo" da União Europeia em 2024 devido à incapacidade de controlar a pesca ilegal.
Mas alguns países estão a aumentar a proteção dos habitats naturais.
A Finlândia e a Suécia uniram forças em 2024 para reprimir a pesca ilegal do salmão, enquanto Portugal expandiu as áreas marinhas protegidas, tornando-se na maior rede deste tipo na Europa.
O cobiçado peixe de África Ocidental
A costa ocidental de África é uma das zonas de pesca mais produtivas do mundo, atraindo frotas da China, da Rússia, da Coreia e da União Europeia. Mesmo assim, os navios espanhóis representam 73% do total das frotas industriais estrangeiras que pescam nesta zona.
Através de acordos de parceria no domínio da pesca sustentável (APPS), os navios da União Europeia podem pescar legalmente as unidades populacionais excedentárias nas zonas económicas exclusivas em troca de uma compensação financeira. Mas estes acordos estão atualmente sob pressão.
O acordo entre Bruxelas e o Senegal, que permitia aos navios da União Europeia pescassem atum e pescada, não foi renovado depois de o país ter recebido um cartão amarelo. O acordo com a Guiné-Bissau mantém-se intacto, permitindo aos navios europeus pesquem atum, camarão e cefalópodes, como a lula e o polvo. Mas não é claro se este acordo é sustentável.
De acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), o rendimento dos pequenos pescadores de África Ocidental diminuiu cerca de 40% nos últimos anos. No Senegal, onde a pesca é indiretamente responsável por mais de meio milhão de empregos, a captura de peixe diminuiu 75% na última década.
Com o desaparecimento das unidades populacionais de peixe, as comunidades locais enfrentam riscos que vão desde a insegurança alimentar à perda de emprego e à migração forçada.
Se a ClientEarth e a Oceana ganharem este caso, as autoridades espanholas podem ser obrigadas a investigar as grandes zonas cinzentas do setor da pesca e talvez começar a resolver estas questões.