A retirada do apoio à Ucrânia por parte do presidente Donald Trump abalou as relações entre a UE e os EUA nos seus primeiros 100 dias e levou a promessas de aumento das despesas com a defesa.
Ursula von der Leyen assinalou os primeiros 100 dias do seu segundo mandato à frente da Comissão Europeia com uma conferência de imprensa de uma hora. Começou com uma nota sombria, com a descrição de um mundo onde as certezas de décadas se estão a desmoronar e as transformações radicais estão a colocar as nações umas contra as outras.
"O que mudou nestes 100 dias foi o novo sentido de urgência. Porque algo de fundamental se alterou", disse a Presidente no seu discurso aos jornalistas em Bruxelas.
"Os nossos valores europeus - a democracia, a liberdade e o Estado de direito - estão ameaçados. Vemos que a soberania, mas também os compromissos sólidos, estão a ser postos em causa. Tudo se tornou transacional".
Mas, acrescentou rapidamente, as perspectivas sombrias não devem ser motivo para cair no desespero e deixar que o destino da Europa seja escrito por outra pessoa. Em vez disso, apelou a uma ação mais corajosa e rápida para aproveitar a "oportunidade única de construir uma Europa mais forte, mais segura e mais próspera".
Eis as principais conclusões da conferência de imprensa.
Continua a considerar os EUA como um aliado
Em menos de dois meses, o regresso de Donald Trump à Casa Branca revelou-se extremamente perturbador para a Europa. O republicano ameaçou aplicar tarifas elevadas aos produtos fabricados na UE, utilizar a força militar e a coerção económica para anexar a Gronelândia e retaliar contra a regulamentação estrangeira que limita os poderes das grandes empresas de tecnologia, entre outras coisas.
O mais preocupante para Bruxelas é o facto de a sua Casa Branca ter esmagado a frente transatlântica na guerra da Rússia contra a Ucrânia, lançando negociações com o presidente Vladimir Putin sem qualquer coordenação com a Europa. A adesão de Trump aos pontos de vista russos, a sua dura retórica contra Volodymyr Zelenskyy e a sua recente decisão de suspender temporariamente a ajuda militar e a partilha de informações com a Ucrânia abalaram profundamente os europeus, que temem que Washington e Moscovo possam chegar a um acordo nas suas costas.
Apesar de tudo o que aconteceu, von der Leyen insiste que os EUA continuam a ser um aliado, mas reconhece um número crescente de pontos de fricção entre os dois lados do Atlântico.
"Perante a adversidade, os EUA e a Europa sempre foram mais fortes juntos", afirmou. "Sim, existem diferenças. Podemos ter pontos de vista diferentes sobre alguns temas, mas se olharmos para os nossos interesses comuns, estes ultraam sempre as nossas diferenças. Por isso, penso que é importante trabalharmos juntos (...) e encontrarmos caminhos comuns".
Von der Leyen apelou à Europa para que faça o seu "trabalho de casa" e assuma a responsabilidade de se defender sem estar dependente da América, que é uma das queixas mais repetidas de Trump. "Sermos aliados não significa que haja um desequilíbrio na responsabilidade ou no fardo partilhado", afirmou.
Questionada sobre se a sua Comissão Europeia vai tentar "desarticular" as relações entre a UE e os EUA, tal como fez com as relações entre a UE e a China, von der Leyen disse: "É claro que não".
"A relação que temos com os Estados Unidos é completamente diferente da que temos com a China", explicou. "Por isso, uma resposta clara".
Mas ela já está à procura de novos parceiros
Os Estados Unidos podem continuar a ser um aliado aos olhos de von der Leyen, mas isso não significa que ela não possa ir à procura de mais. Ao longo das conferências de imprensa, a chefe da Comissão sublinhou várias vezes a importância de estabelecer novas parcerias e alianças com outros países do mundo.
No que diz respeito à defesa, referiu o Reino Unido e a Noruega como dois parceiros ideológica e geograficamente próximos do bloco e que podem contribuir para o objetivo global de rearmar o continente contra o expansionismo da Rússia.
Tanto o Reino Unido como a Noruega já estão envolvidos na formação de uma coligação de interessados em dar garantias de segurança à Ucrânia e salvaguardar um potencial acordo de paz. A Turquia, um país que tem tido vários altos e baixos com Bruxelas, também faz parte das conversações, uma inclusão que foi recebida com forte ceticismo pela Grécia e por Chipre.
No que diz respeito à economia, von der Leyen saudou os recentes acordos comerciais com a Suíça, o México e o Mercosul, bem como os progressos realizados nas negociações com a Malásia, as Caraíbas e a Índia, que visitou na semana ada.
"Para mim, a criação destas parcerias é essencial. Porque aprendemos da maneira mais difícil que obter os produtos de que precisamos de parceiros em quem confiamos é a melhor maneira de evitar dependências excessivas, vulnerabilidades e chantagens", disse ela, referindo-se à manipulação do fornecimento de energia lançada pelo Kremlin em 2022.
Já não exclui a hipótese de uma dívida comum para a defesa
No início desta semana, von der Leyen apresentou o plano Rearm Europe para mobilizar até 800 mil milhões de euros em despesas de defesa nos próximos anos. O pacote, que foi aprovado pelos líderes da UE alguns dias mais tarde, inclui 150 mil milhões de euros em novos empréstimos que a Comissão irá contrair no mercado financeiro e, posteriormente, distribuir pelos Estados-Membros.
Deverá a dívida comum para subvenções comuns ser o próximo o, como o bloco fez em 2020 quando criou o fundo de recuperação da COVID-19?
"Nada está fora de questão. Estou aberta a tudo o que for necessário", respondeu.
Em seguida, observou que iniciar um novo debate na fase atual era "muito cedo" e que, como primeiro o, ela se concentraria em apresentar uma "proposta concreta e legal" para levantar os 150 bilhões de euros em empréstimos, "o que será bastante complicado".
"Nada está fora de questão", repetiu. "Esta é uma decisão dos Estados-membros".
As declarações de Von der Leyen representam uma mudança tangível de opinião. Durante o ano ado, a chefe da Comissão mostrou-se publicamente relutante em apoiar a ideia de "euro-obrigações" para despesas com a defesa, que continuava a ganhar força e novos proponentes, mas permanecia um anátema para a Alemanha, Holanda e Áustria.
No entanto, o pivot dos Estados Unidos para Moscovo e a determinação da Alemanha em libertar-se das restrições fiscais parecem ter feito von der Leyen mudar de ideias.
Ela tem preferência pelo "Buy European"
Enquanto a UE procura dinheiro para se rearmar, surge outra questão crucial: Onde é que o dinheiro deve ser gasto?
Atualmente, o bloco compra cerca de 80% do seu equipamento de defesa a fornecedores de fora da UE, com uma grande parte proveniente de empresas americanas. Esta enorme percentagem tornou-se um motivo de preocupação para os dirigentes da UE, que querem aumentar a sua autossuficiência e autonomia.
A França exigiu uma cláusula "Buy European" em qualquer plano de rearmamento para promover o desenvolvimento das indústrias nacionais e a criação de empregos locais. A Polónia e os Estados Bálticos preferem dar prioridade à rapidez, defendendo que as compras devem ser feitas a fornecedores capazes de entregar o mais rapidamente possível, independentemente da sua localização.
O debate deverá intensificar-se durante as negociações do plano "Rearm Europe".
No domingo, von der Leyen manifestou a sua preferência pelo "Buy European", mas advertiu que a abordagem deve ser "gradual", sem perder de vista a urgência de adquirir armas e munições, nomeadamente para a Ucrânia.
"Se 80% (dos 800 mil milhões de euros) forem para o estrangeiro, isso é bom para outras regiões, mas não para a União Europeia", afirmou. "Estou ciente do facto de que se trata de um aumento gradual do programa 'Buy European' e que temos de pensar no que inclui a Europa", acrescentou, referindo-se ao Reino Unido e à Noruega como possíveis países a acrescentar ao programa.
"Temos de pensar de forma inteligente na forma de o fazer, mas tem de se traduzir em investigação, desenvolvimento e bons empregos aqui na Europa, é para mim muito importante", disse, apelando a um "repensar" da base industrial da UE para promover uma maior cooperação transfronteiriça.
A Presidente quer criar um "Colégio de Segurança"
A conferência de imprensa de domingo foi mais um resumo das iniciativas e projetos que já eram conhecidos. Houve, no entanto, um novo anúncio.
Von der Leyen disse que iria criar um "Colégio de Segurança", um formato inovador para os seus Comissários Europeus receberem atualizações regulares dos serviços de informação sobre os desenvolvimentos relevantes em matéria de segurança e "estarem à frente da curva".
A abordagem à segurança será abrangente, cobrindo ameaças relacionadas com a energia, a investigação, o ciberespaço, o comércio, a migração, a interferência estrangeira e qualquer outro tema possível, explicou. Todos os 27 membros do Colégio participarão no formato.
"Precisamos de mudar para uma mentalidade de preparação", afirmou. "Só se tivermos uma compreensão clara e aprofundada das ameaças, incluindo as ameaças híbridas, poderemos contribuir eficazmente para a segurança colectiva".
Questionada sobre quando se reunirá o primeiro "Colégio de Segurança", von der Leyen não pôde indicar uma data específica, mas disse que será "a seu tempo" e que se reunirá "frequentemente" no futuro.
A Presidente do Conselho da União Europeia mantém-se ao lado da Ucrânia
Apesar do grande enfoque na defesa e das muitas perguntas sobre Donald Trump, a Ucrânia não teve um lugar de destaque na conferência de imprensa de domingo.
No entanto, von der Leyen fez questão de sublinhar o apoio de longa data da UE ao país, apresentando números de assistência militar (52 mil milhões de euros) "a par" dos EUA.
"Aqui teremos de intensificar, sem qualquer dúvida", disse ela, referindo-se à decisão de Trump de suspender temporariamente a ajuda militar e a partilha de informações.
O plano "Rearm Europe" de 800 mil milhões de euros também beneficiaria a Ucrânia porque permitiria aos Estados-Membros adquirir armas e munições mais rapidamente, acrescentou.
Questionada sobre se a Ucrânia deveria sentir-se confiante no apoio futuro da Europa antes das conversações com os EUA na Arábia Saudita, von der Leyen disse que deveria, devido à sua relação próxima com o Presidente Zelenskyy, com quem tem ado "por maus bocados".
"Sabemos que somos fiáveis um para o outro em crises e situações extraordinárias e que podemos, na maior parte das vezes, nem sempre, encontrar soluções trabalhando em estreita colaboração", afirmou.
Von der Leyen afirmou que a maior garantia de segurança para a Ucrânia seria a adesão à NATO, mas que isso "não é possível" devido à oposição declarada de Trump. A Hungria e a Eslováquia, os dois Estados-Membros mais amigos da Rússia, também se opõem vigorosamente a essa adesão. Uma "segunda" garantia de segurança seria um exército ucraniano "bem equipado e funcional". Não mencionou uma missão de manutenção da paz, que tem sido defendida pelo Reino Unido, França e outros aliados.
"Este é um processo de aprendizagem comum", itiu. "Porque estas são águas desconhecidas e, em conjunto, temos de encontrar a solução correta".