Os utilizadores das redes sociais, e os meios de comunicação alternativos,afirmam que documentos da NATO com décadas de existência revelam que a aliança militar foi o cérebro por detrás da Eurovisão.
A temporada da Eurovisão terminou, mas as pessoas continuam a falar dela, incluindo alegações, divulgadas na internet, de que o icónico concurso de canções foi criado pela NATO.
Publicações nas redes sociais e até em alguns meios de comunicação social alegam que a aliança militar queria utilizar este concurso para exercer imperialmente o seu soft power - capacidade de um país de influenciar o comportamento de outros através por exemplo da cultura - durante a Guerra Fria e depois dela.
Algumas publicações partilharam capturas de ecrã de um documento do Comité de Informação e Relações Culturais da NATO, datado de novembro de 1955, que se refere a um "Festival do Atlântico Norte".
O documento diz que uma "performance" pode ser uma forma subtil de promover uma narrativa pró-NATO entre a população em geral.
"Poder-se-ia considerar a distribuição de brochuras informativas da NATO no Festival", diz o documento. "No entanto, a conveniência de o fazer deve ser cuidadosamente ponderada e, à primeira vista, penso que seria um erro, uma vez que introduziria um elemento de propaganda e o Festival pretende alcançar resultados semelhantes por meios mais subtis."
"Em todo o caso, seria muito mais natural influenciar a opinião pública a favor da NATO através do próprio espetáculo", continua.
O "Festival do Atlântico Norte" não é a mesma coisa que o ESC
No entanto, embora o documento seja autêntico, foi retirado do contexto.
O documento, e outros arquivos da NATO, mostram-nos que a Aliança lançou a ideia de um "Festival do Atlântico Norte", mas não era nada parecido com o Festival Eurovisão da Canção e nunca chegou a ser concebido.
O festival teria lugar à margem de uma popular exposição militar anual do exército francês conhecida como "Les Nuits de l'Armée", patrocinada pela revista sa Paris Match.
A exposição incluía várias atuações e atraía todos os anos milhares de espetadores em Paris.
"As «Les Nuits de l'Armée» são populares não só porque o espetáculo é de alto nível e os arranjos físicos excelentes, mas também porque o público adora o brilho e a pompa de uma exibição militar pacífica deste tipo", afirmava a NATO num dos documentos.
Foi esta última consideração que levou os editores do Paris Match a considerar um Festival do Atlântico Norte nos moldes do « Les Nuits de l'Armée» francês, no qual participariam unidades selecionadas das forças armadas dos vários países da NATO.
A ideia era apresentar exibições culturais militares de diferentes membros da NATO, como uma marcha escocesa ao som de gaita de foles do Reino Unido, uma demonstração de cães-polícia belgas e, ou, uma troca de guarda pelos Mounties canadianos.
As alegações online parecem basear-se, em parte, no ano em que o Festival Eurovisão da Canção foi realizado pela primeira vez: 1956, ano em que a NATO publicou alguns destes documentos.
O "Festival do Atlântico Norte" também pode ter sido confundido com o Festival Eurovisão da Canção porque partilham certas caraterísticas e objetivos, nomeadamente a intenção de promover a unidade e a paz na Europa e celebrar a cultura e os meios de comunicação social em todo o continente.
Outro documento refere que a BBC sugeriu a transmissão do festival por toda a Europa utilizando a rede da Eurovisão, propriedade da União Europeia de Radiodifusão (UER).
"Tendo o projeto do Festival do Atlântico Norte sido recentemente mencionado em Londres, quando a Divisão de Informação contatou o Serviço de Televisão da BBC, este declarou que estaria certamente disposto a assegurar a retransmissão do programa através da rede da Eurovisão (Reino Unido, França, Alemanha, Itália e Países Baixos)", refere a NATO no documento.
"As autoridades da BBC explicaram que um espetáculo como o Festival do Atlântico Norte era exatamente o tipo de programa que procuravam", acrescenta.
No entanto, a rede da Eurovisão não é a mesma coisa que o Festival Eurovisão da Canção, isto é, a primeira é uma infraestrutura de radiodifusão criada pela UER (União Europeia de Radiodifusão) em 1954 para trocar conteúdos televisivos e radiofónicos em toda a Europa. Enquanto o segundo é um programa de entretenimento específico que utiliza esta rede para transmitir um concurso de música em direto entre os países participantes.
O sitedo Festival Eurovisão da Canção indica que a ideia da rede partiu de Marcel Bezençon, diretor-geral da Swiss Broadcasting Corporation, e que a ideia do concurso partiu da RAI, o organismo nacional de radiodifusão italiano.
"O programa mais popular e de maior sucesso que UER produziria seria o seu homónimo: o Festival Eurovisão da Canção", diz o site.
"Na sequência de sugestões apresentadas na reunião do seu Comité de Programa em Monte Carlo, no Mónaco, em 1955, a UER decidiu, na sessão da sua Assembleia Geral em Roma, no final desse ano, criar o Festival Eurovisão da Canção".
"A inspiração para o Concurso veio da RAI, que desde 1951 organizava o Festival di Sanremo (o Festival da Canção de Sanremo) na cidade balnear com o mesmo nome", continua.
Também é incorreto sugerir que o Festival Eurovisão da Canção foi criado para promover a propaganda pró-NATO contra a URSS e, mais tarde, contra a Rússia, como o fazem algumas publicações nas redes sociais, pois tanto a Rússia como a Bielorrússia eram membros de pleno direito da UER, incluindo a participação no Festival Eurovisão da Canção, até serem suspensas em 2022 e 2021, respetivamente.
Nenhum dos dois países é membro da NATO, o que também demonstra a independência da aliança militar em relação à UER.
Em última análise, um responsável da NATO disse à Euro que a Aliança não desempenhou qualquer papel na criação do concurso de canções.
Entretanto, um porta-voz do Festival Eurovisão da Canção afirmou que "não há qualquer verdade nestas afirmações".
"O Festival Eurovisão da Canção foi criado pela União Europeia de Radiodifusão em 1956, que continua a coordenar o concurso em nome dos seus membros - meios de comunicação social de serviço público de 56 países", afirmou o porta-voz.