A USAID mudou o seu escritório regional para o Cairo. A Euronews questiona como é que a istração Trump, ao cortar a assistência humanitária - mas não militar - ao Egito e à Jordânia, pode afetar a estabilidade da região e abri-la a outras potências.
A última publicação na página de Facebook da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) para o Médio Oriente foi publicado a 17 de janeiro. “Estamos a contratar”, referia com entusiasmo.
Três dias depois, Donald Trump assumiu a presidência dos EUA. Nesse mesmo dia, assinou uma ordem executiva que congelava toda a ajuda externa, pendente de uma revisão de 90 dias.
Foram necessárias apenas cinco semanas para que a istração e o Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), dirigido por Elon Musk, cortassem 90% dos contratos de ajuda externa da USAID e 60 mil milhões de dólares (53,4 mil milhões de euros) da assistência global dos EUA em todo o mundo.
A decisão - rotulada como “uma das mais abrangentes reduções do financiamento humanitário e de ajuda ao desenvolvimento dos EUA na história” - causou imediatamente repercussões em todo o mundo, sobretudo no Médio Oriente e no Norte de África.
Os EUA têm sido, de longe, o maior financiador das Nações Unidas, fornecendo mais de 13 mil milhões de dólares (11,6 mil milhões de euros) em 2023, o que representou mais de um quarto do seu orçamento total. Este valor é inflacionado para mais de metade no caso de agências como o Programa Alimentar Mundial. Tudo desapareceu, com um golpe de caneta.
Um antigo funcionário da USAID, que falou sob condição de anonimato por receio de represálias, disse que a decisão iria “pôr vidas em perigo”. Em privado, funcionários da ONU contaram à Euronews que a luz e o aquecimento foram permanentemente cortados nos escritórios em pleno inverno, mesmo na sede em Genebra.
A istração também introduziu condições rigorosas - e, segundo alguns, altamente politizadas - para o pouco dinheiro disponível.
Um documento de financiamento dos EUA que um funcionário da ONU partilhou com a Euronews incluía perguntas que pediam aos candidatos para “confirmar que a sua organização não trabalha com entidades associadas a partidos comunistas, socialistas ou totalitários, ou com qualquer partido que defenda crenças anti-americanas”.
Outra condição exige que os projetos “reforcem a soberania dos EUA, limitando a dependência de organizações internacionais ou da governação global”, destacando a ONU.
As mudanças foram sentidas de forma aguda no terreno, no Egito e na Jordânia. Os EUA têm sido, desde há muito, o maior benfeitor internacional de ambos.
Sem contar com a ajuda humanitária indireta das agências internacionais financiadas pelos Estados Unidos, o Cairo e Amã são o terceiro e quarto maiores beneficiários do financiamento internacional dos Estados Unidos, num total de mais de 3 mil milhões de dólares (quase 2,7 mil milhões de euros) por ano.
"Estamos a viver num clima turbulento e tenso que a istração Trump criou”, afirmou Ezzat Saad, antigo diplomata egípcio e ministro-adjunto dos Negócios Estrangeiros, à Euronews, a partir do seu gabinete no Cairo.
No entanto, Washington fez uma distinção crucial entre a ajuda que está a cortar e a que será mantida.
O problema de Rafah
No meio dos cortes e do caos, o governo americano anunciou, em março, que iria criar um novo gabinete regional da USAID no Cairo: uma decisão incongruente e amplamente ignorada. Mesmo os funcionários norte-americanos no terreno itiram à Euronews que não tinham conhecimento da decisão, e muito menos das razões que a motivaram.
Uma análise mais atenta acerca do que constitui a ajuda à Jordânia e ao Egito pode explicar pelo menos parte do raciocínio. Enquanto 75% da ajuda dos EUA à Jordânia é humanitária, esse número desce para apenas 20% no Egito.
O resto é destinado à assistência militar, ou seja, ao fornecimento de armas, de que o Egito é o segundo maior beneficiário, a seguir ao vizinho Israel. Washington já deu a entender que esta forma de apoio não será afetada pelos recentes cortes.
Alguns consideram que a razão para manter essa ajuda está relacionada com a fronteira comum entre os dois países e com a agem de Rafah, controlada pelo Egito, para a Faixa de Gaza.
“A principal questão do Egito é garantir que os habitantes de Gaza permaneçam em Gaza e, para isso, precisam do apoio dos EUA”, explicou Ben Fishman à Euronews, a partir de Washington.
Fishman é membro sénior do think-tank Washington Institute, tendo trabalhado anteriormente no apoio à istração Obama na política para o Médio Oriente, incluindo nos pacotes de ajuda.
Desde o início da campanha israelita contra o Hamas em Gaza, alguns, incluindo ministros israelitas, têm defendido a ideia de abrir a agem fronteiriça de Rafah para o Sinai, a fim de esvaziar o território de uma população civil cada vez mais desesperada, enquanto tentam livrar a Faixa de Gaza do grupo militante.
Mais recentemente, o próprio presidente dos EUA ecoou a ideia.
O Egito tem sofrido anos de sucessivas crises económicas, exacerbadas por um conflito regional que levou a uma quebra no turismo e a um declínio de 60% no rendimento da maior fonte de receitas do Egito, o Canal do Suez.
Parece que a última coisa que o Cairo quer é mais gente para cuidar, especialmente no Sinai do Norte, um território estratégico no Médio Oriente que faz do Egito um dos poucos países do mundo que se estende por dois continentes.
No ano ado, foi noticiado que as autoridades egípcias estavam a construir discretamente um muro de um quilómetro de comprimento e cinco metros de altura, afastado da agem de Rafah.
No entanto, o antigo deputado da oposição egípcia e analista político Amr El-Shobaki questionou a análise de Fishman sobre as razões que estão por detrás da continuação da ajuda militar dos EUA ao Egito, durante uma entrevista à Euronews no Cairo.
Referindo-se à decisão de transferir a sede da USAID para a capital egípcia, El-Shobaki disse: “Com a sede aqui no Egito, talvez eles pensem que ainda é possível convencer o Egito a aceitar pelo menos alguns dos palestinianos de Gaza.”
Saltando entre o inglês, o francês e o árabe, o ex-político esclareceu rapidamente: “É isso que os Estados Unidos estão a pensar. O governo egípcio recusou.”
No entanto, a assistência contínua dos EUA não se estendeu à Jordânia, que já alberga mais refugiados palestinianos registados do que toda a população de Gaza, representando mais de 20% da população do país.
O professor jordano Ayman Al-Barasneh está profundamente preocupado com a perda de financiamento dos EUA para as populações de refugiados.
“Isto irá exercer pressão sobre os serviços públicos essenciais, como os cuidados de saúde, a educação e o apoio aos refugiados”, disse à Euronews, a partir da Universidade da Jordânia. “Todos estes setores dependem fortemente da ajuda dos EUA.”
O professor Al-Barasneh também alertou para o facto de os cortes terem um efeito perigoso, talvez mesmo para além das fronteiras do seu país.
“O apoio contínuo dos EUA tornou-se essencial para a Jordânia manter a sua estabilidade interna, acelerar o desenvolvimento e gerir a sua precária situação geopolítica no meio das guerras do Médio Oriente”, explicou.
A quem é que se vai telefonar?
O recuo dos EUA na Jordânia e, em menor grau, no Egito, está a abrir a porta a novas potências, incluindo a UE, para substituir o domínio da ajuda norte-americana.
Em abril, a UE aprovou um pacote histórico de assistência financeira de 4,5 mil milhões de euros à Jordânia e ao Egito, sendo a maior parte destinada a este último país.
O entendimento foi assinado poucos meses depois de a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, e o Rei Abdullah II da Jordânia terem assinado um outro acordo de apoio, no valor de 3 mil milhões de euros, entre apertos de mão e sorrisos radiantes.
Von der Leyen descreveu a Jordânia como “um parceiro fundamental e um pilar da estabilidade regional”.
O professor Al-Barasneh saudou o acordo como uma “contribuição para a redução do défice financeiro, utilizando 1,32 mil milhões de dólares (1,17 mil milhões de euros) para compensar a perda da ajuda vinda dos EUA”.
Entretanto, Ezzat Saad salientou que a estabilidade no Egito e na Jordânia beneficiava diretamente a UE, uma união política atormentada por debates sobre a migração ilegal através do Mediterrâneo.
“Qualquer redução do papel de Washington nos problemas do Médio Oriente representa um fardo adicional para os europeus”, afirmou.
“Dizemos sempre aos embaixadores europeus que nos visitam que estamos mais perto de vocês do que pensam e que devem pensar em ter um papel político ativo na resolução dos problemas da região”, explicou Saad, que também foi embaixador do Egito na Indonésia, Rússia e Turquemenistão, entre outros.
No entanto, para El-Shobaky, é a existência destes debates e a falta de unidade na Europa que dificultam a sua capacidade de assumir o papel que os EUA parecem estar a abandonar.
“O problema continua a ser a divisão na Europa. Não existe um sistema político comum”, explica o atual diretor da unidade árabe-europeia do Centro de Estudos Políticos e Estratégicos Al-Ahram.
“A Europa é um parceiro económico fantástico. É, na minha opinião, o parceiro económico mais justo do Egito. Mas não podemos contar com a Europa para resolver questões como a questão palestiniana.”
"Alternativas à altura do desafio"
Longe dos Estados Unidos e da União Europeia, a China e a Rússia estão cada vez mais ligadas ao Egito e à Jordânia, especialmente a primeira.
Os países ocidentais e Israel reagiram recentemente com consternação quando o Egito realizou exercícios navais conjuntos com a China e a Rússia no Mediterrâneo, com o nome de código “Ponte da Amizade 2025”.
Na terça-feira ada, foi noticiado que um Il-76MF chinês, um avião de transporte pesado de conceção soviética, tinha aterrado no Egito, levantando especulações sobre a chegada de novo equipamento militar chinês ao país. Foi o último de uma série de voos militares chineses com destino ao Egito.
El-Shobaky explicou com naturalidade que, apesar das garantias dos EUA sobre a ajuda militar ao Egito, “temos de criar alternativas que estejam à altura do desafio, seja com a Europa, seja talvez com a Rússia. Se a guerra [na Ucrânia] parar, é claro que o seu papel vai aumentar. E a China já está a progredir tecnicamente”.
As suas preocupações enquadram-se numa conversa global mais ampla sobre a fiabilidade - ou falta dela - de um país outrora visto como a única potência mundial dominante.
Mas não se deve descartar os Estados Unidos demasiado depressa, contrapôs El-Shobaky, no final da entrevista à Euronews.
“Não creio que o domínio americano desapareça em poucos anos”, disse, acrescentando que o Egito não faz parte do “eixo Irão-Rússia-China”.
“Claro que o Egito tem boas relações com a Rússia e a China, mas tentamos estabelecer um equilíbrio, temos muito boas relações com a Europa. O Egito está integrado num sistema internacional e quem lidera esse sistema internacional? Os EUA.”
Recentemente, a istração Trump também reverteu alguns dos seus cortes de ajuda mais extremos.
No entanto, El-Shobaky afirma que o seu país e os da região em geral terão de lidar com estas areias em constante mudança.
“Eles continuam a fazer o que fazem”, conclui, referindo-se aos EUA, à UE, à Rússia e à China, fechando a porta e abanando ligeiramente a cabeça.
“Nós tentamos apenas gerir e sobreviver.”