Numa altura em que o programa artístico flutuante do European Pavilion 2024 se prepara para rumar até Lisboa, depois de atravessar quatro dos maiores rios do continente, o Water Matters analisa exemplos de projetos culturais flutuantes que visam restabelecer a ligação dos cidadãos aos rios.
Nos dias 7, 8 e 9 de novembro, dezenas de artistas internacionais vão reunir-se em três dias de celebração criativa entre o antigo porto do Beato e a Quinta Alegre, um complexo sociocultural em Lisboa, no âmbito do European Pavilion 2024, "Liquid Becomings".
O European Pavilion é um programa artístico realizado de dois em dois anos pela Fundação Cultural Europeia. Este ano, "Liquid Becomings", produzido pelo Espaço Agora Now em parceria com FLOW, MS-Fusion, Teatro Meia Volta e United Artist Labour, venceu o concurso para propostas de curadoria aberto a organizações culturais de toda a Europa.
Os artistas envolvidos irão partilhar em Lisboa as obras que criaram durante uma viagem de barco de 28 dias em quatro dos rios mais emblemáticos do continente: o Danúbio, o Tejo, o Reno e o Vístula.
A bordo de cada barco, cinco artistas debruçaram-se sobre temas como "Ruínas e Monstros", "Perímetros", "União" e "Corpos e Política". Os barcos foram concebidos como plataformas para a arte, mas também para encontros e debates onde se reflete sobre o futuro da Europa e aquilo que nos liga a todos.
"Partilhámos o que nos é possível, a nossa prática artística com as pessoas, e ouvimos os seus anseios, histórias e sonhos", explica Naomi Russell, co-curadora do projeto Liquid Becomings.
"Queríamos entrar nos sítios menos visíveis e a única forma de o fazer era navegar nos rios, que são como o sistema nervoso que liga a Europa", acrescenta.
Naomi Russell explica que queria criar "um pavilhão que não fosse realmente um pavilhão, para desafiar estas instituições muito fixas, para criar modelos alternativos centrados nas pessoas e nas ideias".
"A utilização de um barco foi intencional, uma espécie de provocação, porque a Europa enriqueceu com embarcações durante a época colonial. E, como sabemos hoje, há embarcações frágeis a atravessar constantemente o mar com refugiados a bordo", afirma.
Ligar aos rios
Em toda a Europa, os artistas parecem estar cada vez mais interessados no potencial cultural dos rios. A Euronews foi até Budapeste para conhecer os organizadores do Fluctuations, anunciado como o primeiro festival de impacto a navegar nos rios europeus.
A primeira edição realizou-se entre maio e outubro em várias cidades europeias. Uma barcaça atracou perto de Lille, seguindo-se paragens em Bruxelas, Utrecht e Budapeste. "Levamos artistas e ativistas na barcaça. Montamos o festival, ficamos durante uma semana e no fim de semana seguinte mudamos o festival para outra cidade", explica Nicolas Dhers, cofundador do Fluctuations.
"Com os rios que temos na Europa, podemos começar em Rouen e ir até à Rússia. Existe uma continuidade física e é isso que também queremos transmitir: uma Europa de territórios muito ligados entre si", acrescenta o jovem parisiense.
Em cada paragem, o festival organizou conferências e rodas de conversa, workshops, uma "aldeia de soluções", uma praça de alimentação sustentável e concertos. Todas as atividades tiveram lugar num cais junto ao rio, exceto as musicais, já que o palco encontrava-se na barcaça.
"O objetivo é mobilizar as pessoas em torno de questões de ecologia e justiça social e tecer narrativas positivas no coração da Europa", explica Charline Albericci, outra fundadora do projeto Fluctuations.
"Queremos promover uma utilização mais ampla dos rios. São utilizados principalmente para fins comerciais, mas queremos promover a sua utilização festiva, poética, ecológica e inclusiva. Está na hora de os promover como espaços sociais", acrescenta.
O festival tinha iniciativas gratuitas e com preços flexíveis, consoante o palco. O projeto Fluctuations recebeu financiamento europeu através do programa Europa Criativa.
A associação Valyo, focada em reaproximar os cidadãos do Danúbio, desempenhou um papel importante na organização do evento em Budapeste, que se realizou num centro cultural no centro da cidade devido à tempestade Boris.
A Valyo, abreviatura de "Város és folyó" ("Cidade e rio" em húngaro), organiza numerosos eventos festivos, culturais e desportivos em torno e no Danúbio, e defende margens limpas, transitáveis e cicláveis.
"Com as alterações climáticas, é muito importante que nestas cidades se tenha o aos rios, que estes estejam suficientemente limpos para se poder nadar neles, como aconteceu em Paris. Em Budapeste, a qualidade da água é muito melhor e há mais espaço para a utilizar", afirma Miklós Tömör, gestor de projetos da Valyo.
Outro objetivo do projeto era estudar a regulamentação relativa à cultura fluvial nos países europeus e fazer campanha para a sua harmonização e simplificação.
Thomas Scheele, gestor de projetos na agência de defesa dedicada ao apoio aos criativos e à preservação da cultura noturna Vibelab, associou-se ao festival para apresentar um estudo relevante sobre a cultura líquida na Europa, realizado em cinco países e que abrange a investigação de 36 recipientes culturais.
"Fizemos um levantamento das vias navegáveis europeias de uma perspetiva cultural", explica Scheele. "Onde estão as iniciativas culturais informais? Onde estão as embarcações culturais e como é que elas lidam com os regulamentos para que tenham um lugar no quadro jurídico?"
O objetivo deste relatório era introduzir um sistema de categorização para cada abordagem, a fim de ajudar os futuros promotores da cultura flutuante em toda a Europa, segundo Thomas Scheele, que esteve envolvido no surgimento da arte na água em Berlim, na década de 2010.
"Tínhamos este grande espaço aberto, a água, e pensámos: não é possível gentrificar o rio, ninguém pode construir centros comerciais nele", recorda.
Berlim é a meca da cultura na água da Europa. A capital alemã tem um grande número de barcos culturais, muitos dos quais se reúnem na Baía de Rummelsburger, um braço do rio Spree na parte oriental da cidade.
Thomas Scheele defende a criação de "portos culturais", onde os barcos culturais possam atracar e criar espaços flutuantes efémeros antes de voltarem a zarpar.
"Muitas pessoas acham que cultura equivale a eventos e que eventos equivalem a lixo. Mas as pessoas que fazem coisas na água aprendem muito sobre o rio e isso faz com que sejam mais cuidadosas. São muito rígidas, organizam limpezas dos rios", diz o berlinense.
"Temos de encontrar formas de as pessoas viverem com o rio e cuidarem dele. Caso contrário, tratam-no como se não valesse nada", conclui.