A moção apresentada pelo Chega foi rejeitada pelo Parlamento sem grandes surpresas, sendo o partido proponente o único que votou a favor.
O Governo português enfrentou esta sexta-feira a sua primeira moção de censura, menos de 11 meses depois de tomar posse. A moção apresentada pelo Chega foi rejeitada pelo Parlamento sem grandes surpresas. Apenas os deputados do Chega votaram a favor, tal como o deputado não inscrito Miguel Arruda, antigo membro do partido de André Ventura.
O P absteve-se, com os restantes a optarem pelo voto contra.
Na origem desta iniciativa, está uma notícia do Correio da Manhã, publicada no último sábado, que dava conta que a família do primeiro-ministro Luís Montenegro é dona de uma empresa que tem como uma das atividades a compra e venda de imóveis. André Ventura convocou uma conferência de imprensa para domingo e fez um ultimato ao primeiro-ministro: caso não fossem dadas explicações sobre a empresa nas 24 horas seguintes, o Chega apresentaria uma moção de censura ao Governo.
Em causa está a empresa Spinumviva, que foi criada em janeiro de 2021 e tem um vasto objeto social, com quatro códigos de atividade económica (CAE). O principal é o de atividades de consultoria para os negócios e gestão. Os restantes três são de compra e venda de bens imobiliários, viticultura e outras atividades de consultoria, científicas, técnicas e similares.
A Spinumviva foi constituída por Luís Montenegro, a mulher e os dois filhos. A sede da empresa é a morada da família, em Espinho. Quando a família criou a empresa, Montenegro era o sócio-gerente e detinha a quota maior (62,5%), mas deixou a empresa um mês depois de ter sido eleito presidente do PSD (2022) e a sua quota foi distribuída pela mulher, que ficou como sócia maioritária, e pelos dois filhos.
Primeiro-ministro envolvido em possível conflito de interesses
Na base desta polémica estará um potencial conflito de interesses, dado que a empresa em questão tem no seu objeto social a compra e venda de imóveis e poderá beneficiar da alteração à “Lei dos Solos”, aprovada pelo Governo.
A recente introdução da chamada “Lei dos Solos” estabelece um novo regime para a reclassificação de terrenos rústicos em urbanos, simplificando o processo e permitindo a transformação de terrenos não edificados em áreas íveis de urbanização, desde que cumpram um conjunto de requisitos.
Nos últimos dias, André Ventura foi acusado de querer desviar as atenções dos casos do Chega ao apresentar uma moção de censura ao Governo que já se sabia que seria chumbada à partida, dada a demarcação do Partido Socialista desta iniciativa.
Como partido proponente da moção de censura, o Chega fez a primeira intervenção para a abertura do debate, tendo André Ventura declarado que a razão desta moção de censura é “a incapacidade, a falta de transparência e a obstinação de um primeiro-ministro em não responder a quem tem que responder”.
André Ventura acusa PSD de manter "espírito de promiscuidade"
André Ventura acusou também o executivo de ter olhado “para o lado” e ter continuado “a fazer tudo o que de errado PS tinha feito”, e de manter o “espírito de promiscuidade”.
“Substituímos apenas o cartão rosa pelo cartão laranja”, disse, acusando o Governo de parecer mais uma “agência da Remax” do que uma “agência que governa Portugal”.
Ventura exigiu que o primeiro-ministro esclarecesse várias questões, como “quando e por que razão” constituiu a empresa, quando cedeu a quota, “sabendo que não pode transmitir património dentro do seu património”, e ainda quem são os clientes desta empresa.
André Ventura alegou ainda que o número de telefone da empresa é o número do primeiro-ministro e que a empresa paga quatro mil euros de renda, quando tem sede em casa de Luís Montenegro.
O líder do Chega mencionou também os casos do ministro Adjunto e da Coesão Territorial de Portugal Manuel Castro Almeida, da ministra da Justiça, Rita Júdice, e da ministra do Trabalho, Rosário Palma Ramalho — todos têm ou tiveram empresas do ramo imobiliário —, exigindo a sua demissão.
Ventura atacou ainda o líder do PS, acusando Pedro Nuno Santos de não falar neste debate porque no PS “há a mesma falta de vergonha” que há no Governo.
Defendendo que o "escrutínio democrático e justo", é "legítimo e saudável", Luís Montenegro começou por explicar que criou a empresa porque teve "solicitações" fora da advocacia, área em que se formou. Sendo que os filhos são licenciados em gestão e istração de empresas, o primeiro-ministro argumentou que decidiu criar “uma entidade para o trabalho fora da advocacia, envolvendo também a família”, que servisse ou para preparar o futuro dos filhos ou para lhes ar a empresa caso voltasse à política.
O chefe do executivo frisou que, logo quando criou a empresa, decidiu que, se voltasse à política, depositaria a empresa nos seus filhos.
Garantindo que o objetivo central da empresa é o investimento vinícola na quinta que a família tem no Douro, o primeiro-ministro revelou que queria ar aos filhos um princípio dos pais: “Não venderam nada do que receberam dos meus avós. Não vou vender nada do que recebi dos meus pais. E adoraria saber que os meus filhos não sentiam necessidade de vender nada dos bisavós.”
Depois prosseguiu a enumerar uma longa lista de atividades do objeto social da empresa que vai da atividade de consultoria de gestão à exploração agrícola, ando pela reorganização de empresas, organização de eventos, consultoria sobre atividade seguradora, política de marketing, gestão e comércio de bens imóveis e a exploração agrícola e vitivinícola.
“Chamar a isto imobiliária é manifestamente despropositado, é um tiro ao lado”, atirou Montenegro, considerando que “deter direta ou indiretamente quota numa empresa não gera conflito de interesses” e defendendo que “os imóveis não têm qualquer hipótese de enquadramento nas alterações da lei dos solos”.
O primeiro-ministro falou ainda da faturação e resultados líquidos que a empresa teve em cada ano, os clientes, considerando que “não era obrigado” a prestar estas informações, alertando que até pode violar o “sigilo” a que se vinculou. Indicou também que os lucros da empresa estão totalmente destinados ao investimento e por isso não foram distribuídos em dividendos. A ideia é investir numa start-up tecnológica e numa adega na quinta do Douro.
“André Ventura não sabe o que diz e acredita em tudo o que vê nos jornais” acusa Montenegro
Ainda sobre a transmissão da sua quota, disse que antes de assumir a presidência do PSD se “libertou da responsabilidade” pela empresa. “Esta transmissão é perfeitamente legal, embora ninguém me impedisse de manter participações”, referiu, esclarecendo que na sua declaração de rendimentos estão as participações por causa do regime de comunhão de adquiridos.
“O telefone é o meu porque conta do registo”, explicou, numa referência às suspeitas levantadas pelo líder do Chega. “André Ventura não sabe o que diz e acredita em tudo o que vê nos jornais”, criticou.
"Sabem o meu património e origem. Sabem onde moro. A partir de hoje sabem a minha estratégia pessoal e familiar. A partir de hoje só respondo a quem for tão transparente como eu”, rematou o primeiro-ministro.
O primeiro pedido de esclarecimento surgiu da bancada do PSD, tendo Hugo Soares identificado os problemas do Chega, começando pelo caso de Miguel Arruda. “Devemos sempre desconfiar dos desconfiados”, atacou, afirmando que “eles conhecem-se a si próprios e julgam os outros pela sua própria bitola”.
Hugo Soares questionou ainda a “coerência” de André Ventura, acusando-o de apoiar Donald Trump que é “um grande magnata do imobiliário”.
Falando ainda da “moralidade bacoca” do Chega, apontou o dedo à bancada onde diz que há “deputados que têm imobiliárias que discutem aqui a lei dos solos”. “O populismo não se combate com populismo, mas com competência”, concluiu.
Nas intervenções seguintes, vários deputados do PSD foram tomando a palavra para perguntar à bancada mais à direita do plenário se censuravam medidas do Governo como o aumento do Complemento Solidário para Idosos, a comparticipação de medicamentos para os mais idosos, os aumentos para as forças de segurança, e por aí fora. E todos repetiram o mesmo lema: “O populismo combate-se com competência”.
Os restantes partidos, da esquerda à direita, também acusaram o Chega de querer criar uma “manobra de diversão”. Pelo PS, Pedro Nuno Santos confirmou que o seu partido ia votar contra a moção de censura por não quererem contribuir para uma “manobra de diversão” para “desviar a atenção de problemas graves, de polícia, criminais, de falta de educação” do Chega.
Rui Rocha, líder da Iniciativa Liberal, lembrou que, antes de avançar com a moção de censura, o Chega “atravessava uma crise” e estava à “beira do precipício”. E elencou oito dirigentes do partido que tiveram ou têm problemas na justiça, como Miguel Arruda ou Nuno Pardal.
O líder parlamentar do CDS, Paulo Núncio, também criticou André Ventura por fazer acusações ao primeiro-ministro, quando devia “retratar-se e pedir desculpa por tudo o que de grave tem acontecido no Chega nos últimos tempos”.
Também o coordenador do Livre acusou de “supremo descaramento um partido que todos os dias, pinga a pinga, trazia escândalos”. Para Rui Tavares, o Chega fez da moção de censura “tábua de salvação”.