Circulam alegações de que as autoridades espanholas fizeram experiências com a rede eléctrica pouco antes do apagão do mês ado. A Euro corroborou os dados.
Um artigo publicado na semana ada no jornal britânico The Telegraph afirma que o apagão maciço que deixou a Península Ibérica às escuras, a 28 de abril, foi causado por uma "experiência" do Governo espanhol com as energias renováveis.
Ambrose Evans-Pritchard, editor de Economia Mundial do Telegraph, escreveu que, de acordo com "fontes em Bruxelas", as autoridades espanholas estavam a "sondar até onde podiam levar a dependência das energias renováveis", em preparação para a eliminação progressiva dos reactores nucleares em Espanha.
Não explicou as suas fontes nem forneceu provas para sustentar as suas afirmações.
As acusações foram retomadas pelos principais meios de comunicação social espanhóis e internacionais, como El Periódico, El Mundo e Antena 3, bem como The Daily Mail e CNN, e amplificadas pelos utilizadores das redes sociais.
Mas um olhar mais atento ao artigo revela que foi efetivamente publicado como um editorial de opinião e não como um artigo noticioso, e Ambrose Evans-Pritchard é um colunista regular do Telegraph.
O colunista usa o apagão de 28 de abril para criticar a política energética do Governo socialista espanhol do primeiro-ministro Pedro Sánchez. De acordo com um plano acordado em 2019 com Sánchez, a Espanha irá eliminar gradualmente as suas centrais nucleares durante a próxima década para se concentrar em fontes de energia verde, uma medida que Evans-Pritchard considera imprudente.
Na sua análise, Evans-Pritchard cita "fontes em Bruxelas" que confirmaram que Espanha fez uma experiência antes do encerramento.
Mas depois diz: "Se se provar que o apagão foi uma experiência controlada que correu mal, e se esta informação tiver sido ocultada ao público (...) a esquerda espanhola enfrenta o esquecimento eleitoral de uma geração política".
A Euro ou o Telegraph para obter esclarecimentos sobre o número de fontes consultadas, bem como o seu papel em relação às investigações em curso sobre o incidente, mas ainda não obteve resposta.
Perguntámos também à Comissão Europeia se podia refutar ou corroborar as afirmações. Um porta-voz afirmou que o executivo não faria qualquer comentário enquanto não tivesse conhecimento da investigação sobre as causas do apagão.
A Comissão deu a Espanha um prazo de três meses a contar da data do apagão para apresentar um relatório técnico sobre o incidente, uma exigência da legislação comunitária. Um grupo de peritos europeus está a realizar a sua própria investigação para a apresentar à Comissão.
Por seu lado, o Governo espanhol negou "categoricamente" as afirmações do The Telegraph.
A vice-presidente do governo, María Jesús Montero, afirmou que havia "interesses corporativos" por detrás do artigo, acrescentando que o jornal britânico é "conhecido por difundir boatos, espalhar mentiras e tentar distorcer a opinião pública".
Um porta-voz da Red Eléctrica, a empresa parcialmente estatal responsável pela gestão da rede elétrica espanhola, disse à Euro que esta "nega categoricamente" as afirmações, acrescentando que se trata de um "embuste".
Os peritos afirmam que a teoria "não tem lógica".
Para determinar se uma tal "experiência" governamental na rede elétrica poderia, em princípio, ser exequível, a Euro falou com três especialistas em engenharia elétrica.
Estes explicaram que, embora nenhuma hipótese possa ser completamente excluída, a perspetiva de uma tal experiência é altamente improvável.
"Tudo pode ser possível, mas esta (teoria) não parece razoável", disse Manuel Alcázar-Ortega, diretor-adjunto do Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade Politécnica de Valência, à Euro.
"Do ponto de vista técnico, a Red Eléctrica tem um simulador que replica toda a rede de transmissão. Assim, estas simulações não precisam de ser feitas na vida real. Podem ser feitas neste simulador.
O simulador é utilizado para testar a capacidade da rede e prever a sua evolução, a fim de desenvolver as suas infra-estruturas e adaptar-se às suas necessidades futuras, explicou Alcázar-Ortega.
O professor Dirk Van Hertem, investigador do centro de investigação EnergyVille, na Bélgica, confirmou que estas simulações informáticas são utilizadas para analisar a rede.
Embora os testes reais possam ser feitos na prática, "não há provas de que tenham sido feitos na altura" em Espanha, acrescentou.
Van Herteam acrescentou que o momento em questão não teria sido propício para testar a capacidade da rede para absorver as energias renováveis, uma vez que "não foi o momento de maior penetração das energias renováveis em Espanha".
Energias renováveis "não são o problema"
Um mês após o apagão, as investigações ainda não chegaram a conclusões definitivas, apesar de as primeiras análises apontarem para uma forte "oscilação" na rede elétrica meia hora antes do apagão, bem como para falhas consecutivas em subestações no sudoeste de Espanha.
A falta de respostas alimentou a especulação sobre o impacto da crescente quota de energias renováveis na rede.
Tudo parece indicar que sim, com a ressalva de que o culpado não é a energia renovável em si, mas provavelmente a forma como este recurso tem sido gerido", respondeu Alcázar-Ortega.
Nos últimos anos, Espanha registou um crescimento exponencial da quota-parte das energias renováveis no seu cabaz energético, com a energia eólica, solar e hídrica a gerar um recorde de 56,8% da eletricidade espanhola até 2024.
"Este crescimento não foi acompanhado de sistemas para compensar a inércia que o sistema estava a perder por não ter um substituto para a inércia real proporcionada pelos geradores de eletricidade tradicionais", afirmou Alcázar-Ortega.
A inércia do sistema na rede ajuda a manter a frequência dentro de um intervalo aceitável. As fontes de energia renováveis, como a eólica e a solar, são consideradas "não inerciais", o que torna a rede mais instável e suscetível a falhas.
"A culpa não é das energias renováveis, mas sim da inexistência de sistemas de armazenamento ou de outros tipos de inversores "formadores de rede" (...) capazes de fornecer este controlo de frequência", acrescentou Alcázar-Ortega.
O primeiro-ministro espanhol afirmou que "não há provas empíricas de que o incidente tenha sido causado por um excesso de energias renováveis", acusando os grupos pró-nucleares de capitalizarem o incidente para fazerem campanha contra o abandono progressivo das centrais nucleares.